terça-feira, 10 de setembro de 2013

"Muita fé em Deus, coletividade, e pros parceiros do outro lado da muralha, paz justiça e liberdade!"

Uma operação cinematográfica nos padrões Hollywood: foi o que a Polícia Militar realizou na Praça da Liberdade; Uma operação militar nos padrões de países em guerra: foi o que a Polícia Militar realizou na Praça Raul Soares. Dezenas de pessoas presas num terror para quem tentava de algum modo se organizar e exprimir suas ideias e opiniões coletivamente. Dentre essas pessoas presas, destaco um estudante negro que fugia das bombas e foi sumariamente espancado por cinco ou seis policiais brancos que o escolheram, quebraram seu braço e o arrastaram pelo chão puxando seus dreads, já sangrando devido aos ferimentos do espancamento. Uma guerra desleal declarada pela Polícia contra o povo que protesta. Mas para que e a quem serve um órgão militar, se não para se preparar para guerras e conflitos armados nos quais existe um inimigo a se subtrair, em defesa de interesses de poucos comandantes, coronéis de Polícia e coronéis do dinheiro? 

O fato da Polícia ser militar nos responde por que suas táticas e operações adotam uma postura ostensiva de guerra. A filosofia militar presente na Polícia não lhe dá uma autoconsciência de agente da "segurança" e, nesse sentido, de atuar de modo "coerente com a realidade e com a Constituição", como ela é descrita pelo Estado e pela mídia; não, pelo contrário, essa filosofia militar lhe dá a consciência de que está permanentemente num campo de batalha onde se posiciona e se movimenta contra seu inimigo, seja qual for, na circunstância que for. 

A Polícia ser militar é uma opção estratégica para se naturalizar na instituição de "segurança pública" políticas e filosofias de repressão. A alienação da hierarquia, a transformação de pessoas em cães de guarda e a compreensão militar de inimigo de guerra que se entranham no modus operandi da PM, em suas mais internas instâncias e quadras de treinamentos nos quartéis, dão aos policiais a raiva babosa necessária para que apliquem com eficácia e consciência limpa a barbárie e o massacre ofertados pelo Estado. 

Existem práticas, discursos, métodos e vários outros elementos que compõe uma cultura criada e alimentada nos quartéis durante centenas de anos que fazem uma pessoa se transformar psicológica e corporalmente, com o porte de suas armas, cassetetes, rádios, coletes, capacetes, hierarquias, viaturas e histórias de glória e horror, em um produto vazio e meramente repressivo, um sanguinário disciplinado, um ditador em plenitude, que no fim das contas ostenta e tem em ti a personificação de todo o Estado e de sua política em voga. Torna-se um ríspido hostil, feito uma hiena que ri com desdém e maldade de sua presa se definhando quando ataca com êxito seu inimigo de guerra, ora apresentado por seus superiores nas operações das quais participa nas ruas e periferias, ora apresentado pela cultura racista e higienizadora difundida em tua instituição, no Estado e nas mídias a todo momento. Mesmo que o inimigo seja alguém que compartilha de tua realidade nas labutas econômicas todo fim de mês, como talvez no choro de um filho esfomeado, não importa para este corpo controlado pela disciplina e filosofia militar: o outro é modelado pelo militarismo como um inimigo de guerra não só da polícia mas também da sociedade. 

E, desse modo, o todo poderoso ditador no qual o Estado se manifesta e se constitui, com suas patentes e ordens a quem possa dar e submissões a quem deva acatar, sente-se legítimo para desmoralizar, xingar, oprimir, bater, algemar, prender, julgar, condenar e sentenciar as penas que lhe forem interessantes, matando, sumindo, torturando etc. Afinal, o Estado é ele e a justiça por ele pode - e deve - ser realizada. Em guerra, numa batalha bélica contra o inimigo, não há leis a não ser a tua própria, a não ser ti próprio. E assim o Estado segue massacrando o povo pobre, nas periferias e nos movimentos sociais, por meio de tuas milhares de réplicas carnificadas espalhadas pelas ruas como agentes de segurança pública. 

E não está apenas no militarismo o problema da repressão: está intrinsecamente na existência da polícia. A Polícia é o braço armado do Estado que se espalha pelas ruas a serviço do programa político e ideológico no qual este Estado se orienta, mesmo que se diga que é um órgão para garantir a segurança pública. Enquanto houver uma sociedade desigual, baseada na competitividade e na exploração, haverá sempre o temor da insegurança e, por via de consequência, a necessidade de se sentir protegido a qualquer custo. A insegurança, muitas vezes produzida e reproduzida em maiores proporções nas mídias e na cultura massificada, sempre caminhará braços dados ao sistema explorador. As classes baixas devem trabalhar, quando não trabalhar devem se marginalizar e roubar, traficar; é em teu seio que a criminalidade midiática deve permear, viralizar, que a imagem do tráfico há de se fixar, justamente para serem vigiadas, controladas e reprimidas pela segurança pública. As classes baixas devem temer a ti próprias para buscar proteção no Estado, por sua vez dirigido por classes antagônicas e que têm interesse na manutenção das coisas como elas estão - trabalho, criminalidade, vigilância e repressão. É nesse sentido, para atender a estes fins, que surgiu e que existe a polícia. 

As polícias e as prisões surgem em momentos na história que, como quaisquer outros, têm seus elementos políticos, sociais e econômicos de seu tempo. Ou seja, elas foram elaboradas, construídas e desenvolvidas por alguém e em função de algum objetivo. Por surgirem das estruturas de dominação de seu tempo, dirigidas por uma determinada classe orientada por seus próprios interesses, a polícia e as prisões já surgem, portanto, orquestradas em serviço de uma política muito bem determinada. O nascimento das prisões confunde-se de certo modo com o nascimento dos hospitais e dos hospícios: era necessário para a elite dominante despejar incômodos e desvios sociais, morais ou mesmo patológicos em detenções isoladas das cidades. As cidades europeias, séculos atrás, legitimaram e abraçaram tais políticas de higienização e encarceramento justamente por conta desse mesmo temor generalizado que hoje vemos tantos Datenas e Marcelos Rezendes, fiéis aprendizes de Goebbels, vomitarem nos canais abertos de televisão, esgoelando "chega de impunidade!", "polícia nas ruas!" e "cadeia neles!", utilizando táticas nazistas de persuasão feito papagaios propagandistas da SS. 

As polícias e as prisões surgem, portanto, para a garantia da exploração. E ainda hoje existem para tal, mesmo que prestem vários outros serviços que teriam como função contornar problemas sociais que pela história foram surgindo como consequências de problemas estruturais do capitalismo. 

E não está apenas no militarismo, nas polícias e prisões o problema da repressão e da manutenção da exploração: está, em última análise, nos seus progenitores, o Estado e o capitalismo. O capitalismo detém o Estado, que por sua parte detém o monopólio da violência. O Estado se alimenta do capitalismo para sua estruturação financeira, cultural e material, que por sua parte detém o monopólio econômico. É uma relação de reciprocidade utilitarista: estão de braços dados na missão de perpetuar o domínio de um seleto grupo de privilegiados sobre a desgraça de um massivo grupo de trabalhadores, desempregados, esfomeados, pretos, mulheres, pobres etc. 

Apesar da relação afetiva entre os maiores sistemas e instituições da sociedade conceder uma grandiosidade social, econômica e material em serviço dos interesses da dominação, ambos têm condições próprias de desempenhar tal função, mesmo o Estado distante do capital ou o capital distante do Estado. Juntos ou isolados, ambos são os problemas-raízes da sociedade desigual, segregatória e discriminatória. 

Um Estado tem as condições materiais essenciais para que se opere na sociedade políticas além da que o capital impõe. Ou seja, assim como o Estado pode defender o capitalismo, o Estado pode executar políticas de forma autônoma e paralela ao sistema econômico vigente, seja este o capitalismo neoliberal, a social-democracia radical, o socialismo de Estado marxista-leninista ou qualquer outro. O Estado tem condições de garantir regalias políticas e econômicas de grupos ou poucas pessoas que o dirigem ao mesmo tempo que ele defende e garante as estruturas da economia. Não há ideologia ou anseio nacional que ditem em totalidade a política e as movimentações do Estado.

Não há opção para a liberdade e igualdade do povo que não busque a destituição destes sistemas, num romper brusco e incisivo equivalente para ambas as estruturas. E se ainda insistem em dizer que desse modo não é possível, que o derrubar imediato do capital e do Estado está fora de cogitação para a emancipação do povo oprimido, seja por impossibilidades materiais ou seja por ditos equívocos estratégicos, remato que então é impossível que conquistemos a libertação e igualdade desejadas. Pelas vias da dominação a dominação não se desfaz: ela se reconfigura, se remodela e se prolonga. Só com a construção da liberdade e da solidariedade que alcança-se a liberdade e a igualdade. 

Desenrolo por aqui essas reflexões que surgiram junto à rebeldia decorrentes das cenas de horror que presenciei neste 7 de setembro de 2013 em Belo Horizonte, como, num primeiro momento, um certo alívio: só poderia me sentir um pouco melhor depois de desabafá-las, encontrando um pouco de calma num espírito que por muito vibrou e se estremeceu de nervosismo pelo que presenciou. Assim como, num segundo momento, porém ainda mais importante que o primeiro, em forma de solidariedade às muit@s outr@s companheir@s, que por sua vez viveram de modo mais brutal, sendo espancad@s, torturad@s, eletrocutad@s e até pres@s, enquanto a presidenta Dilma, presa e torturada na ditadura, desfilava entre oficiais militares neste desgraçado feriado da pátria. 

A estas vítimas das quais muit@s são camaradas de luta já de longa data, à todas as outras mais de 500mil vítimas que compartilham a amargura de estarem trancafiadas pelas grades do capital, como a qualquer um que sofre um abuso policial nas ruas racistas e preconceituosas deste país do coronelismo branco e elitista, dedico essas reflexões e sobretudo a razão da minha militância. 

Avante à luta contra as opressões!
Avante à luta pela liberdade e igualdade!
Avante à Anarquia!

2 comentários:

  1. Ou seja, elas foram elaboradas, construídas e desenvolvidas por alguém e em função de algum objetivo.'' E é justamente por isso que todo preso é um preso político, resultado de uma escolha política!

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  2. Justamente Marina! Foi bem por esse motivo que eu quis evidenciar isso. As engrenagens apenas se ajustam para as necessidades - muitas vezes criadas e superestimadas - da vida doentia do capitalismo.

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