domingo, 29 de janeiro de 2012

REVOLUÇÃO UCRANIANA, SOVIETES E O ESTADO "REVOLUCIONÁRIO"


 No texto "O Grande Outubro na Ucrânia", Nestor Makhno narra as atividades revolucionárias dos campesinos ucranianos meses antes do outubro de 1917. O espírito revolucionário manifestado pelo operariado russo em outubro já pulsava pelo sul da Rússia, onde, na Ucrânia, os campesinos rebelados se organizaram e se determinaram como protagonistas da organização social, triunfando sobre as forças conservadoras e reacionárias daquela região.

Ucrânia, março de 1917.
Outubro ainda não havia ocorrido quando os camponeses, em inúmeras regiões, recusaram-se a pagar os impostos de arrendamento aos pomestchikis e aos kulaks, confiscaram-lhes as terras e o gado, em nome das suas colectividades, enviaram, em seguida, delegados ao proletariado das cidades para se entender com ele quanto ao controle das fábricas, empresas, etc., e estabelecer elos fraternos a fim de construírem , juntos, a nova e livre sociedade dos trabalhadores.
Naquele momento, a aplicação prática das ideias do "grande Outubro" não tinha sido adoptada pelos seus inimigos, e era muito criticada nos grupos, organizações, partidos, e seus comités centrais. Desse modo, o grande Outubro, na sua designação cronológica oficial, aparece aos camponeses revolucionários da Ucrânia como uma etapa já alcançada. 
[...] 
Tanto estimamos a fé revolucionária e o orgulho manifestado pelos camponeses ucranianos antes de Outubro, como celebramos, também, e nos inclinamos diante das ideias, da vontade e da energia manifestadas pelos operários, camponeses e soldados russos durante as jornadas de Outubro. 
É verdade que, ao tratar do passado, não é possível passar ao lado do presente, ligado de um modo ou de outro a Outubro. 
Não podemos deixar de exprimir uma profunda dor moral pelo facto de, após dez anos, as ideias que encontraram a sua expressão em Outubro serem achincalhadas por aqueles, que em seu nome, chegaram ao poder e dirigem a partir daí a Rússia. 
Nós exprimimos a nossa solidariedade entristecida por todos aqueles que lutaram connosco pelo triunfo de Outubro, e que apodrecem actualmente nas prisões e nos campos de concentração, cujos sofrimentos, sob a tortura e a fome, chegam até nós, e obrigam-nos a sentir, em vez de alegria pelo 10ª aniversário do grande Outubro, uma profunda aflição. [1]


Até que o proletariado russo, em outubro, desenvolveu uma luta crescente com os mesmos objetivos e recebeu um apoio fraternário do campesinato ucraniano já em processo de autogestão. Os sovietes nasceram e serviram, então, à organização direta do povo, construindo um poder popular em defesa de sua emancipação.

Entretanto, 10 anos depois, Makhno denuncia a morte da revolução quando um partido (o Bolchevique) a centraliza no Estado e aniquila, assim, a autonomia federativa e revolucionária dos sovietes - e em consequência do povo rebelado.

Algo já atentado há anos atrás, desde o seio da I Internacional, por Bakunin e a Aliança [2], como também por Errico Malatesta, que, em carta a Luigi Fabbri, sobre a nascente política bolchevique União Soviética,

Na realidade se trata da ditadura de um partido, ou melhor, dos chefes de um partido. E é uma ditadura verdadeira e própria, com seus decretos, com suas canções penais, com seus agentes executivos, e sobre tudo com sua força armada, que serve hoje para defender a revolução de seus inimigos externos, mas que serviráamanhã para impor aos trabalhadores a vontade dos ditadores, deter a revolução, consolidar os novos interesses que se tem feito constituir e defender contra as massas uma nova classe privilegiada. Também o General Bonaparte serviu para defender a Revolução Francesa contra a reação européia, mas, ao defendê-la, a afogou. Lênin, Trotski e seus companheiros são seguramente revolucionários sinceros, da forma que eles entendem a revolução, e não a traíram; mas preparam os quadros governamentais que servirão aos que venham depois para aproveitar-se da revolução e assassiná-la.
Eles serão as primeiras vitimas de seu método e com eles, temo, cairá a revolução. A história que se repete: mutatis mutandis, a ditadura de Robespierre levou-o à guilhotina e prepara o caminho para Napoleão. [3]

Malatesta não foi um visionário, não era um gênio, era apenas um socialista sujeito ao erro como todos somos. Malatesta fez apenas uma leitura - bem feita, a propósito - do futuro da União Soviética tendo como base a fatal atualidade do Estado naquele momento.

Basicamente, estes pontos que nós anarquistas sempre criticamos - e que justamente nos fazem romper com o marxismo - evidenciaram que depois de alguns anos a revolução russa perdera completamente tua orientação revolucionária classista e, nas mais novas necessidades burocráticas, orientou-se ao desenvolvimento de um Estado totalitário imperialista ultra-centralizado, ultra-burocrático e com objetivos claros de manutenção do poder do partido. Em consequência, morreram aqueles que eram os mais sinceros objetivos socialistas ainda das décadas de 10 e 20, quando, por exemplo, os sovietes travavam guerras nos campos contra o exército branco e realmente coletivizavam e socializavam as cidades e os campos.

Seus meios foram confundidos como seus fins, e essa é a maior debilidade da proposta política marxista. Uma vez que é sobejamente necessária uma demasiada atenção à organização e estruturação do Estado no período revolucionário, é certo o desnorteio da real atenção que devemos dar à revolução, à emancipação integral de nossa classe. O Estado é um empecilho à revolução, é um retrocesso sem proporções, burocratiza, cresce no decorrer do tempo em que se centraliza, o partido se adapta ao poder e a tendência natural é a adaptação dos trabalhadores - tratados como massa pelos bolcheviques - ao regime totalitário pseudo-socialista.

Com o tempo e com o engordo exacerbado do Estado, as práticas de socialização de fato da economia, da decisão política e até da cultura são dizimadas. Muitos insistem em negar, tomando como exemplo algumas participações populares, ainda que na URSS, em comitês de bairros, nos "sovietes", nas fábricas etc. Não pode-se discordar que a participação popular nesses círculos sociais e políticos foram consideráveis, mas a autonomia, princípio básico para o crescimento da consciência popular sob todos os aspectos de participação coletiva, fora destruída. Cede-se obrigatoriamente, então, espaço à integral vinculação destas diversas agitações ao Estado, colocando-o como o único viés de realizar ou ter contato com política, cultura e decisões sociais, enaltecendo-o como o grande leviatã, o grande irmão, o onipresente e onipotente órgão revolucionário e firmando a ideia de que sem ele nada seria possível às massas.

O Estado, uma vez centralizado, cresce e barra a luta revolucionária, barra o desenvolvimento crítico popular, barra a verdadeira participação popular das decisões que somente ao povo dizem respeito, barra sobretudo as práticas socialistas que deveriam o mais rápido possível serem colocadas em prática.

Insistimos na aplicação organizada dos princípios fundamentais socialistas para a construção efetiva da revolução e dos nossos fins. Por exemplo, durante a Guerra Civil Espanhola, Buenaventura Durruti discursa aos trabalhadores do campo após vitórias ante as tropas reacionárias franquistas, os pistoleiros e os latifundiários:

Já se organizaram em coletivos? Não esperem mais. Ocupem as terras! Organizem-se de forma que não haja chefes nem parasitas entre vocês. Se não o fizerem, é inútil que continuemos avançando. Precisamos criar um mundo novo, diferente do que estamos destruindo. [4]


 Por essas questões, é imprescindível a abolição imediata do Estado num eventual triunfo da revolução dos oprimidos.

Os anarquistas o repetiram milhares de vezes, e toda a História o confirma: a propriedade individual e o poder político são dois elos de uma mesma corrente que esmaga a humanidade; são como dois fios da lâmina do punhal de um assassino. É impossível libertar-se de um se não se liberta também do outro. Se abolirem a propriedade individual sem abolir o Estado, ao que ela se reconstituirá graças aos governos. Se abolirem o governo sem abolir a propriedade individual, os proprietários reconstituirão o governo. [5]


REFERÊNCIAS:

[1] MAKHNO, Nestor. "O Grande Outubro na Ucrânia", in SKIRDA, Alexandre (organizador). revista Libertárias nº1, Outubro/Novembro 1997.

[2] BAKUNIN, Mikhail. Estatutos Secretos da Aliança: Programa e Objetivo da Organização Revolucionária dos Irmãos Internacionais (1868). CD-R Instituto Internacional de História Social de Amsterdã. Tradução de Frank Mintz do francês ao espanhol. Tradução do espanhol ao português por Aneleh. s/d

[3] MALATESTA, Errico. Carta de Errico Malatesta a Luiggi Fabbri. Londres, 30 de julho 1919.

[4] Buenaventura Durruti em discurso aos revolucionários da Espanha. 1936.

[5] MALATESTA, Errico. O Estado Socialista, in L’Agitazione n.10, Ancona, 15 de maio de 1897.


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